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Vítimas de violência doméstica são agredidas também pelo despreparo médico, mostra pesquisa

23 maio 2012 - 08h18Por Correio Braziliense
Pesquisa da USP aponta falhas no atendimento prestado a mulheres vítimas da violência doméstica em hospitais públicos.

A dificuldade em identificar o crime e a falta de costume de notificá-lo estão entre os erros cometidos pelos profissionais observados.

Não bastasse o sofrimento de ser agredida por alguém íntimo, a mulher vítima da violência doméstica ainda trava uma batalha no atendimento hospitalar contra o preconceito e o descaso.

A conclusão é de um estudo realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) que analisou as percepções de médicos e de enfermeiras da rede pública de saúde sobre esse tipo de crime.

A ideia era compreender como os profissionais entendem essas agressões e se as percepções deles interferem no atendimento às pacientes.

De acordo com a autora do estudo, a psicóloga Mariana Hasse, médicos e enfermeiras têm dificuldades em identificar e acolher os casos de violência que chegam às unidades de saúde, mesmo eles sendo tão frequentes e repetitivos.

"Cerca de 35% das mulheres que procuram os serviços de saúde já sofreram algum tipo de violência pelo menos uma vez na vida", diz.

Os profissionais pesquisados associam as agressões contra as mulheres a questões íntimas dos casais e ao uso abusivo de álcool e de drogas.

No caso das enfermeiras, o destaque foi para a atuação da mulher no mercado de trabalho.

"Isso teria desestruturado as famílias e estimulado a violência. Essa percepção retrata muito a culpa dessas mulheres por duplicarem as jornadas ao irem trabalhar fora", salienta Hasse.

De uma forma geral, segundo a especialista, a postura dos entrevistados sobre a violência doméstica — origem, motivações, tipos e consequências — foi bem parecida.

Comum e em muitos casos distorcida, essa percepção interfere na forma como a vítima é atendida, indica também o estudo.

Monique*, 20 anos, foi esfaqueada pelo ex-marido e, ao procurar atendimento hospitalar, sentiu a indiferença dos médicos.

"Foi um descaso. O médico perguntou se a faca estava enferrujada e se eu já tinha tomado as vacinas (contra tétano), mas, em nenhum instante, me questionou sobre como aquilo tinha acontecido comigo", recorda.

A mulher, mãe de um filho, lembra que os médicos conversavam banalidades enquanto a tratavam. Depois, a liberaram sem fazer a notificação do crime.

A coordenadora do Núcleo de Estudos e Programas para os Acidentes e Violências do Distrito Federal (Nepav/GDF), Lucy Mary Stroher, explica que a notificação nas situações de violência é uma obrigação prevista em lei (Lei nº 10.778 de 2003), podendo o profissional de saúde ser responsabilizado em caso de omissão.

Esse registro indica à Vigilância Epidemiológica e ao Sistema Nacional de Notificação sobre o ocorrido, além de proporcionar à vítima atendimento psicossocial e encaminhamento à delegacia para a busca de proteção.

"Na delegacia, descobri que o hospital não poderia me liberar sem nenhuma segurança", recorda Monique. O sentimento dela, quando se lembra do episódio, é de desvalorização.

"Como eu sei que eles tratam todas as pessoas assim, não levei para o lado pessoal. Mas acho péssimo pagarmos impostos e sermos tratados com tanto descaso", desabafa.
Sem orientação

Hasse percebeu que, nos casos em que a violência física era evidente, os profissionais tiveram facilidade em identificá-la.

Contudo, a dificuldade em orientar as vítimas ainda persistia, prova de que os servidores públicos estudados desconheciam ou ignoravam a rede de proteção existente.

"Os enfermeiros tiveram treinamento sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita ou de confirmação de violência. Por isso, notificaram mais do que os médicos", indica a psicóloga.

Quando a profissional era mulher, foi perceptível a motivação de caráter pessoal e moral em cuidar das vítimas em situação de violência.

A secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal, Olgamir Amancia, acredita que, quando o profissional está preparado a ser sensível às questões femininas, ele percebe uma vítima de violência doméstica sem precisar que ela se anuncie.

"A vítima fala de diversas formas. Se o médico ou o enfermeiro estiver preparado, ele vai perceber", acredita.

Para ela, o problema indicado pela pesquisadora paulistana é uma realidade em todo o país.

"A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado.

Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer", diz.

Segundo Hasse, a formação oferecida aos profissionais de saúde também deixa a desejar.

De forma geral, dificilmente a categoria é formada em uma linha humanista, com condições de entender os processos sociais de adoecimento.

Acaba, então, adotando uma lógica causal ao explicar as doenças e uma prática curativista ao tratá-las.

"Especificamente falo sobre a precariedade da formação para a questão de gênero e da violência de gênero. Nenhum dos profissionais entrevistados referiu ter estudado o assunto nem na graduação nem nos cursos de pós-graduação", critica.

A médica sanitarista Karina Morelli, diretora da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Presidência da República, acredita que médicos e enfermeiros deveriam ter uma formação ainda na faculdade voltada para o atendimento à violência doméstica. "Por isso as dificuldades.

A violência contra a mulher não é uma doença, não está ligada exclusivamente ao corpo e sim a uma questão naturalizada e cultural", observa.

Hasse destaca ainda a abrangência desses treinamentos. "Se puderem entender esses processos, vão perceber que só um médico ou só um psicólogo, enfim, que nenhum profissional sozinho é suficientemente capaz de cuidar das vítimas da violência doméstica adequadamente. É preciso agregar saberes e fazeres para isso", opina.
Nome fictício

"A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado.

Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer" - Olgamir Amancia, secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal.

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