Comunidade quilombola ganha título de terra após 8 anos de espera
Comunidade quilombola ganha título de terra após 8 anos de espera
01 junho 2012 - 16h50
G1 MS
A comunidade quilombola Chácara Buriti, localizada na zona rural de Campo Grande, receberá nesta sexta-feira (1º) o título das terras após anos de espera. Conforme a Fundação Cultural Palmares, foram oito anos desde que o processo de regularização foi aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Para especialistas, esse tempo é curto se comparado ao de outras comunidades, porém está longe do ideal. O próprio Incra reconhece a demora e culpa a falta de infraestrutura adequada para acelerar e ações judiciais de antigos donos das áreas.
O aposentado Otacílio Bento de Arruda, de 88 anos, diz ser um dos moradores mais antigos da pequena vila que fica nas proximidades da BR-163. Ele afirma que no passado a vida era bem mais difícil na comunidade, mas sente falta dos festejos comuns quando a rotina era baseada principalmente no trabalho rural.
“Nós fazíamos mutirão para limpar a lavoura e, no sábado à noite, tinha baile e brincadeiras, com sanfona, violão, música sertaneja e o pessoal dançando até amanhecer”, lembra.
Para Arruda, o que não mudou ao longo do tempo foi que a Chácara Buriti continua sendo um lugar tranquilo e bom para se viver. “Aqui nós escutamos barulho dos passarinhos, do lobo lá no mato. Hoje a comunidade está mais favorável do que naquele tempo. Antes não tinha nem asfalto, era só mato e estrada de chão. Para ir à cidade, era a cavalo ou a pé”, afirma.
Casas de alvenaria com água encanada e energia elétrica na comunidade são exemplos de melhoras nas condições de vida. Hoje, os moradores também conseguem usar o celular e acessar a internet sem sair da propriedade.
O cultivo de alimentos está mais tímido que antigamente, mas, de acordo com o produtor rural Roberval Sebastião da Silva, 43 anos, persiste por meio do cultivo de sete hortas. Ele planta orgânicos que vende para diversas entidades. Além disso, ainda tem um galinheiro.
“Nessa época [final de maio], predomina o alface, mas temos também rúcula, couve, salsa, berinjela, cebolinha, todos os tipos de verduras e legumes. O galinheiro serve para produção de esterco, usado para adubar a terra”, descreve Silva.
Avanços contrastam com problemas antigos na comunidade, segundo a agricultora e atual presidente da associação de moradores da Chácara Buriti, Lucineia de Lucineia de Jesus Domingos Gabilão, 27 anos. Ela destaca que a maioria dos homens ainda precisa trabalhar fora da comunidade para sustentar as famílias, sem contar a falta de coleta de esgoto e postos de saúde.
“Para fazer consulta, temos que ir até o posto de Anhanduí. Agora se alguém passa mal, temos que levar para a UPA [Unidade de Pronto Atendimento] em Campo Grande”, afirma.
Lucineia relata que outro item que falta na comunidade é escola. Segundo ela, crianças e os adolescentes quilombolas precisam pegar ônibus para estudar ou no estabelecimento de ensino municipal às margens da BR-163 ou no estadual, em Anhanduí, a quase 15 km da Chácara Buriti.
No aspecto cultural, conforme a presidente, as 'rezas' dos antigos foram substituídas pelo louvor na igreja evangélica instalada na comunidade, que tem cultos às quartas-feiras e aos domingos. Ela afirma que cerca de 90% dos moradores são protestantes hoje.
“O pessoal antigo fazia muita reza e acreditava muito em santos. Há algum tempo, um casal virou evangélico, depois a mudança foi passando de um para o outro”, pontua.
Ainda assim, conforme Lucineia, a gente simples da comunidade continua a se reunir para longas conversas em uma praça existente na propriedade ou indo até as casas de vizinhos. “Todo mundo senta, conversa e toma tereré. São nesses momentos que a gente mais conversa e dá risada. É uma família que ri muito”, diz.
O que dizem especialistas
O antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Antônio Hilário Aguilera Urquiza afirma ao G1 que a atuação do Incra na demarcação e titulação das terras quilombolas deveria ser mais ágil. Para ele, o motivo da morosidade dos processos é a ineficácia da estrutura atual.
“As titulações que estão acontecendo com mais rapidez demora de 7 a 8 anos, é um prazo muito largo. Muitas vezes, as comunidades perdem a paciência. Uma solução seria alocar mais recursos para indenização [para os antigos donos], que é a fase onde empaca mais, e dar mais agilidade ao processo demarcatório.”
Além disso, Urquiza enfatiza que só a terra não basta para as comunidades. “Tem que ter a terra aliada às condições de produção, no sentido de apoio e escoamento dessa produção e geração de renda. Também é preciso de investimentos em educação e saúde, que estão garantidos em lei, ampliar acesso à moradia e saneamento básico.”
O antropólogo e professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Levi Marques Pereira concorda com Urquiza e disse que o processo de titulação de terras quilombolas gera muita tensão e conflito. O pesquisador explica que nem sempre as pessoas estão dispostas a vender a propriedade para o Incra.
“Ao contrário do que se imagina, o processo é bastante conflituoso, não só em Mato Grosso do Sul, mas em todas as regiões do Brasil, pois tem processos judiciais que fazem a titulação demorar mais tempo. Além disso, tem a própria dificuldade do governo em gerir o processo administrativo dentro de um prazo razoável, é tudo moroso”, diz.
Mesmo com a demora, Pereira considera positivo o processo de regularização de terras quilombolas. “É uma vitória, pois se reverte uma tendência histórica de exclusão dos negros. Mesmo sendo comunidades pequenas, tem uma reversão do processo de exclusão. Isso sinaliza para outras comunidades que estão aguardando, já que a titulação está ocorrendo com outras.”
Outro lado
O coordenador do serviço de regularização fundiária de territórios quilombolas do Incra em Mato Grosso do Sul, Mauro Jacob, admite que o processo é muito longo. Para ele, fatores como o amplo direito de defesa dos produtores rurais e prazos que devem ser respeitados até a análise e trâmite da ação são determinantes para a demora.
“Cada processo tem suas particularidades e acaba travando, pois é um processo feito com muito cuidado, dentro das prerrogativas legais e da legislação”, diz.
O coordenador afirma ainda que a falta de infraestrutura também contribui para agravar a questão. “O Incra muitas vezes carece de infraestrutura adequada, principalmente de pessoal, e isso também atrasa um processo. Com o tempo, a tendência é ficar mais rápido, porque as pessoas que estão trabalhando estão mais preparadas. Um fator primordial para agilidade é ter recursos, especialmente para as ações indenizatórias”, afirmou Jacob.